A visão do Congresso e a visão do Supremo
Do traficante criminoso ao usuário de entorpecentes
Marcelo Barros Melo [1]
Diziam antigamente in claris cessat interpretativo, ou “quando o texto é claro, cessa a interpretação”. Não se sabe exatamente o criador do brocardo jurídico latino, frequente e equivocadamente atribuído à origem romana[1]. No campo legislativo, MAXIMILIANO cita outro adágio, de Celso: scire leges non hoc est, verba earurm tenere, sed vim ac potestatem (saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e poder)[2].
O presente artigo não se propõe a escrever expressões latinas, comparar-lhes ou buscar seus significados, mas com tal recurso retórico busca-se introduzir o seguinte tema: a “intenção do Congresso Nacional” e a “intenção do Supremo Tribunal Federal” em um determinado tema. Mais precisamente, é a tentativa compreender as visões da lei a partir do ponto de vista do legislador e do julgador em relação à Lei 11.343/2006. Seria clara o suficiente a diferenciação legal do traficante e do usuário de drogas a partir dos termos empregados? O que pretendeu o formulador da norma e o que resultou da leitura do aplicador desta?
Como premissa do presente trabalho, adota-se a ideia de que uma suposta intenção do legislador não é o único norte interpretativo apto a desvelar o sentido da lei, uma vez que existem inúmeras outras técnicas de interpretação da norma jurídica. Todavia, o que se pretende é contrapor o trabalho da casa que legisla com aquele da casa que julga, para, a partir daí, observar em que pontos ambas aparentam estar alinhadas ou desalinhadas – e como se deram esses ajustes e/ou desajustes no decorrer do tempo.
Posto isso, é certo que por um breve período nos últimos 20 anos, viveu-se no ordenamento jurídico brasileiro um período de “confusão jurídica” naquilo que se refere ao regramento da matéria de substâncias entorpecentes. Foi assim quando da vigência concomitante de dois normativos de drogas, a Lei 10.409/2002 (na parte processual), e a Lei 6.368/1976 (na parte penal), problema apenas resolvido pelo advento da atual Lei 11.343/2006, que unificou ambas as abordagens e trouxe novas perspectivas sobre o tema.
Nesse aspecto, uma das primeiras e maiores controvérsias que surgiu foi a seguinte: a nova lei aboliu o crime de uso de entorpecentes? A Lei 6.368/1976, em seu artigo 16, previa que para todo aquele que “[a]dquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” seria aplicada a pena de detenção, de 6 meses a 2 anos, mais pagamento de 20 a 50 dias multa.
Por outro lado, a nova legislação, em seu artigo 28 da Lei 11.343/2006, passou a dispor que “[q]uem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas”, momento no qual veicula em seus incisos: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; e III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
A mudança mostrou-se um prato cheio para discussões na academia e nas judicializações operadas nas cortes do país. Ora, se no antigo normativo falava-se em pena de detenção, agora fala-se em penas com roupagem de medidas educativas. Sendo assim, e embora o art. 16 e o novo art. 28 encontrem-se topograficamente situados em capitulo intitulado “dos crimes e das penas”, começaram a surgir questionamentos.
Os debates podem ser muito bem sintetizados a partir de artigo escrito por Luiz Flávio Gomes e Rogério Cunha Sanches[3], onde perquiriram se o legislador manteve o crime; se ele criou uma infração penal sui generis (posição preferida dos autores); ou se optou por tornar atípica a conduta, transformando-a em infração administrativa.
A dúvida se fazia pertinente pois, além de variados outros motivos, o artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (LICP)[4] estabelece que deve ser considerado crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa.
Buscando aprofundar a análise do que poderia ser a visão do legislador, instrumento relevante para a busca de sua intenção em relação à controvérsia é o parecer do deputado Paulo Pimenta, relator do PL 7.134/2002 (que deu origem à atual Lei de Drogas), documento no qual o parlamentar utiliza, em algumas passagens, a palavra crime:
Reservamos o Título III para tratar exclusivamente das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserçao social de usuários e dependentes de drogas. Nele incluímos toda a matéria referente a usuários e dependentes, optando, inclusive, por trazer para este título o crime do usuário, separando-o dos demais delitos previstos na lei, os quais se referem à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas – Título IV.
Nos Capítulos I e II deste Título, podemos destacar o reforço do papel da prevenção do uso indevido, da atenção e da reinserção social do usuário e dependente de drogas, através do estabelecimento de princípios e objetivos precisos (art. 18 a 25).
Com relação ao crime de uso de drogas, a grande virtude da proposta é a eliminação da possibilidade de prisão para o usuário e dependente. Conforme vem sendo cientificamente apontado, a prisão dos usuários e dependentes não traz benefícios à sociedade, pois, por um lado, os impede de receber a atenção necessária, inclusive com tratamento eficaz e, por outro, faz com que passem a conviver com agentes de crimes muito mais graves.
Ressalvamos que não estamos, de forma alguma, descriminalizando a conduta do usuário – o Brasil é, inclusive, signatário de convenções internacionais que proíbem a eliminação desse delito. O que fazemos é apenas modificar os tipos de penas a serem aplicadas ao usuário, excluindo a privação da liberdade, como pena principal. No entanto, para que o condenado não possa se subtrair ao cumprimento das penas restritivas de direitos prevista no Substitutivo que ora apresentamos, estabelecemos a possibilidade de condenação do usuário nas penas do art. 330, do Código Penal em vigor[5].
A partir do momento que a celeuma foi subindo as instâncias judiciárias, e acessou os tribunais superiores, o Supremo Tribunal Federal teve que se manifestar a respeito. Na questão de ordem no recurso extraordinário nº 430.105/RJ (julgado em 13/02/2007 e publicado no dia 21/04/2025)[6], a Suprema Corte parece ter anuído com a suposta “vontade do legislador” e mantido a criminalização do porte de entorpecentes para uso pessoal. O fundamento utilizado foi o de que, em verdade, a nova Lei de Drogas teria apenas despenalizado a conduta do usuário. Na oportunidade, também ficou assentado, dentre outras coisas, que o art. 1º da LICP apenas estabeleceu critério para distinção entre crime e contravenção, não impedindo que lei ordinária posterior adotasse outros critérios gerais de distinção ou estabelecesse, como o fez no art. 28 da Lei 11.343/2006, pena diversa da privação ou restrição de liberdade.
Interessante reparar que no julgamento do mencionado feito, o próprio relator, ministro Sepúlveda Pertence, mencionou nas razões de decidir de seu voto os trabalhos legislativos anteriores à edição da atual Lei de drogas. Conquanto tenha ressalvado que o relatório ao projeto de lei 7.134/2002 não seria exatamente revelador das reais intenções do legislador, o magistrado afirma, logo em seguida, ser necessário compreender que não houve equívoco do Congresso Nacional “na colocação das condutas num capítulo chamado ‘Dos Crimes e das Penas’ e, a partir daí, analisar se, na Lei, tal como posta, outros elementos reforçam a tese de que o fato continua sendo crime”[7].
Sendo assim, em linguagem coloquial, parecia que o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional teriam estabelecido um matrimônio. Entretanto, e já antecipando, o enlace, como num relacionamento entre pessoas reais, sofreu com o desgaste do tempo e com as mudanças sociais e dos próprios atores.
O marco do início de tal “rompimento” poderia ser considerado a data de 22/02/2011, que foi o dia da autuação do recurso extraordinário n. 635.659/RJ, com repercussão geral posteriormente reconhecida, por meio do qual a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro questionou a constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006, no que tange justamente às sanções carreadas nos seus incisos I a III, sob o argumento de que a criminalização do porte de substancias entorpecentes para uso próprio violaria a Constituição Federal, ferindo o princípio da dignidade humana. O raciocínio daquele órgão seria o seguinte, se os núcleos do tipo do art. 28 seriam nocivos apenas ao próprio usuário, não haveria lesividade apta a justificar a intervenção do direito penal (e criminalizar a conduta).
O fim da história se deu no julgamento do recurso, onde plenário virtual STF afastou-se da compreensão anterior a respeito da matéria e, em aparente pedido de “divórcio” do Congresso Nacional, reconheceu a atipicidade da conduta de portar 40 gramas de maconha ou o cultivo de até seis plantas fêmeas, para uso pessoal, com base justamento no art. 28 da Lei de Drogas. A partir daí, estabeleceu a seguinte tese no Tema 506[8]:
1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III); 2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta; 3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em Juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28 da Lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença; 4. Nos termos do § 2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito; 5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes; 6. Nesses casos, caberá ao Delegado de Polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários; 7. Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio; 8. A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário.
Em reação ao julgamento, noticiou-se amplamente o descontentamento do parlamento, cuja formação atual conta com número significativo de deputados e senadores de viés conservador. No âmbito do Senado Federal, de maioria conservadora, a proposta de emenda constitucional antidrogas (PEC 34/2023) ganhou maior impulso, intentando o autor do projeto, senador Sargento Gonçalves-PL “o combate às drogas ilícitas como princípio fundamental e vetando a descriminalização do tráfico e a legalização de novas drogas recreativas”[9].
A partir dessa manifestação, já seria possível observar algum tipo de “vontade do legislador” sendo gestada? O fato é que um projeto de lei, ou de emenda à Constituição, ainda não ingressou no ordenamento jurídico, mas, sem dúvidas, as discussões e os projetos apresentados podem conferir ao intérprete/observador do momento histórico uma melhor percepção daquilo que integrantes do Poder Legislativo têm considerado relevante para o País. Nesse ponto, oportuna as conclusões de Roberta Simões Nascimento em seu artigo dedicado ao tema da “intenção do legislador”:
Quanto às possibilidades reais de verificação da intenção legislativa, observou-se que as situações com mais potencial para tal análise são aquelas que aludem ao legislador atual, que a qualquer momento pode emitir uma lei interpretativa capaz de corrigir a suposta intenção imputada e anular uma interpretação indesejada proposta pelo Poder Judiciário[10].
Retomando a analogia anteriormente posta: o relacionamento da casa das leis e da casa dos julgamentos retomará um dia? Não se sabe. Ao que parece, conforme se apresentou, a crise conjugal ainda não acabou. Contudo, vale mais uma vez a advertência de NASCIMENTO, de que é a lei que governa, e “não a intenção do legislador, de maneira que o governo das leis, e não dos homens, exigiria que apenas as intenções legislativas efetivamente expressas no texto vinculassem os cidadãos. Se a intenção não está objetivada (por escrito), não é vinculante”[11]. Saber a visão (interpretação) de quem irá prevalecer não é exatamente o escopo desta obra, mas o certo é que estão lançadas as bases dos próximos capítulos para a discussão do tema.
[1] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 38.
[2] MAXIMILIANO, op. cit., p. 38.
[3] GOMES, Luiz Flávio; SANCHES, Rogério Cunha. Posse de drogas para consumo pessoal: crime, infração penal "sui generis" ou infração administrativa? Migalhas, 7 mar. 2007. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/34439/posse-de-drogas-para-consumo-pessoal--crime--infracao-penal--sui-generis--ou-infracao-administrativa. Acesso em: 1 mar. 2025.
[4] BRASIL. Decreto-Lei Nº 3.914, de 9 de Dezembro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3914.htm. Acesso em: 31/01/2025.
[5] BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Parecer sobre o Projeto de Lei nº 7.134, de 2002. Relator: Paulo Pimenta. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=197758&filename=Tramitacao-PRL%201%20CCJC%20=%3E%20PL%207134/2002. Acesso em: 1 mar. 2025.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1ª Turma). RE 430.105-QO. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=443566 (RE 430105 QO, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 13-02-2007, DJe-004 DIVULG 26-04-2007 PUBLIC 27-04-2007 DJ 27-04-2007 PP-00069 EMENT VOL-02273-04 PP-00729 RB v. 19, n. 523, 2007, p. 17-21 RT v. 96, n. 863, 2007, p. 516-523). Acesso em : 1 mar. 2025
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1ª Turma). RE 430.105-QO. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=443566 (RE 430105 QO, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 13-02-2007, DJe-004 DIVULG 26-04-2007 PUBLIC 27-04-2007 DJ 27-04-2007 PP-00069 EMENT VOL-02273-04 PP-00729 RB v. 19, n. 523, 2007, p. 17-21 RT v. 96, n. 863, 2007, p. 516-523). Acesso em : 1 mar. 2025.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 635.659/SP. Relator: Gilmar Mendes. Brasília, DF, 23 ago. 2015. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4121549. Acesso em: 1 mar. 2025.
[9] PEROSSI, J. Proposta de Emenda Constitucional antidrogas pode alterar o cenário jurídico em vigor no País. Jornal da USP, São Paulo, 16 abr. 2024. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/proposta-de-emenda-constitucional-antidrogas-pode-alterar-o-cenario-juridico-em-vigor-no-pais/. Acesso em: 1 mar. 2025.
[10] NASCIMENTO, Roberta Simões. O argumento da intenção do legislador: anotações teóricas sobre uso e significado. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 232, p. 167-193, out./dez. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/232/ ril_v58_n232_p167. Acesso em: 1 mar. 2025, páginas 189-190.
[11] SIMÕES, op. cit., p. 168.
[1] Marcelo Barros Melo é Mestrando do Programa de Mestrado Profissional da Universidade de Brasília – UnB
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