Grupos de trabalho e perda da qualidade deliberativa no processo legislativo
José Agostinho M. Galvão de Barros Filho [1]
Apresentação da discussão.
O objeto do artigo é uma análise da atuação dos grupos de trabalho nas 56ª (1/2/2019 a 21 a 31/1/2023) e 57ª Legislaturas (1/2/2023 até hoje), períodos equivalentes com as gestões do Deputado Federal Arthur Lira, como Presidente da Mesa da Câmara dos Deputados e a qualidade deliberativa do processo legislativo.
Debate-se os grupos de trabalho, como forma de processamento das proposições legislativas, o prejuízo à transparência e à qualidade das deliberações da Casa, desafiando a participação social no processo decisório, em um campo que prevalece a informalidade.
Avaliação dos dados constantes nas tabelas sobre os grupos de trabalhos anunciados e instalados nas 56ª e 57ª Legislaturas
Na 56ª Legislatura foram instalados 22 grupos de trabalho, enquanto na atual (57ª) são 8 grupos de trabalho. Em ambas as legislaturas, foram formados grupos de trabalho para debater reformas estruturais e regulamentação de temas como tributação, mineração, redes sociais e legislação eleitoral.
Na 56ª o ponto central esteve voltado para revisão de códigos legais (novo Código de Processo Penal) questões setoriais (Revisão do Código de Mineração, Reforma da Legislação Eleitoral e Licenciamento Ambiental) e temas emergentes (Implantação da Tecnologia 5G e Piso Salarial da Enfermagem), dentre outros.
Já na 57ª Legislatura, os GTs tiveram temas estruturantes e de impacto nacional (Reforma Tributária, Digitalização e Desburocratização, Minirreforma Eleitoral e Combate à Violência nas Escolas) e Regulamentação das Redes Sociais.
Na 56ª Legislatura, 5 GTs foram anunciados e não instalados, assim como apenas o GT da Regulamentação das Redes Sociais (PL 2.630/2020), na 57ª Legislatura.
Quanto as audiências públicas e participação de convidados, os GTs sobre a Reforma Tributária e sobre a Regulamentação da Reforma Tributária, na atual legislatura, realizaram 47 e 37 audiências e ouviram, respectivamente, 144 e 418 convidados, sendo, ainda, os mais representativos quanto ao resultado em propostas legislativas, como a PEC 45/2024 e o Projeto de Lei Complementar PLP 64/2024. Ainda na 57ª, encaminharam proposições o GT da Minirreforma Eleitoral (PLP 192/2023 e PL 4.438/2023).
Há uma tendência de carga horária significativamente maior, com uma superior produção de propostas legislativas e uma melhor participação de especialistas nos debates na 57ª Legislatura.
Na 56ª Legislatura, ocorreram diversos arquivamentos de propostas ou ausência de avanço na tramitação, sendo que a mais significativa produção foi o GT do Estatuto das Vítimas, que resultou na aprovação do Estatuto das Vítimas (PL 3.890/2020).
Já a 57ª, ocorreu uma maior incidência de GTs que resultaram em votações rápidas em plenário, com manifestação de relatores das Comissões Temáticas naquela oportunidade, mas, havendo um maior êxito nas aprovações como a PEC 45/2024, da Reforma Tributária, portanto, com maior comprometimento com a produção legislativa e maior participação da sociedade civil.
Assim, a análise comparativa dos GTs da 56ª e 57ª Legislaturas mostra que houve uma evolução importante na organização e na eficiência desses grupos na 57ª Legislatura. A maior duração das atividades, o aumento no número de audiências e a quantidade de convidados demonstram um maior aprofundamento nas discussões. Além disso, o impacto legislativo foi mais expressivo na 57ª Legislatura, com maior êxito na aprovação de propostas. Essa tendência pode indicar um amadurecimento no uso dos GTs como ferramenta de formulação e aprimoramento da legislação.
Análise da correção da decisão processo legislativo à luz das referências teóricas estudadas no plano de ensino
O Legislativo brasileiro não se aproxima de qualquer dos modelos clássicos. Comparadas às comissões legislativas norte-americanas, nossas comissões são fracas. Estão longe de ser unidades autónomas e responsáveis pela gestação de políticas na área de sua atribuição. Tampouco cabe se falar em um modelo em que todo o poder de propor é monopolizado pelo Executivo, como é o caso do gabinete inglês (Figueiredo e Limongi, 2004)
Em primeiro, em conjunto com a definição do devido processo legislativo, temos o princípio da deliberação suficiente, que pode ser verificado a partir dos arts. 58, § 2º, inciso II; 60, § 2º; 64 e 65, da Constituição Federal, como de observância obrigatória nos parlamentos, de modo a garantir tempo razoável para as discussões e debate parlamentar substancial, isto é, que se aprofunde no mérito da proposta legislativa.
Assim, a ausência absoluta de debate legislativo, nas comissões temáticas, principalmente, ou a manifesta insuficiência por má qualidade desses debates justificariam o controle judicial e a declaração de inconstitucionalidade respectiva.
Não obstante o debate sobre o cabimento do controle de constitucionalidade deste aspecto do processo legislativo – hoje utilizado na Alemanha, Colômbia, Estados Unidos, Israel e Peru (Nascimento, 2021) – o principal argumento da literatura sobre o princípio da deliberação suficiente é o respeito ao princípio democrático, de que as decisões majoritárias sejam fruto de deliberações públicas, com prévia troca de argumentos e contra-argumentos, informações e deliberação como forma de legitimar as decisões legislativas.
A partir de então, a deliberação suficiente com base jurídica de forma a estabelecer os ritos indispensáveis para o desenho de um processo razoável e adequado à criação do novo direito.
Por outro lado, deve ser destacado, ainda, a intenção legislativa, para compreensão da chamada occasio legis, o contexto que originou a lei. Para tanto, são relevantes as exposições de motivos, preâmbulos, justificativas, informes e pareceres produzidos nas comissões, atas taquigráficas e registros das sessões com os debates parlamentares, ou seja, tudo que permita alcançar a ambição ou a justificativa que possa adequadamente ser reconhecida como a intenção do Parlamento (Nascimento, 2021).
Portanto, a intenção legislativa tem valor maior quanto mais se olhe para o caráter essencialmente argumentativo da legislação como processo.
Além disso, dentre as táticas para saltos na tramitação (Nascimento, 2021), os GTs podem ser considerados como estratégicos para subtrair do necessário conjunto de passos regimentais para aprovação de uma proposição legislativa.
No processo legislativo nacional, a Presidência e outros órgãos da Câmara dos Deputados podem criar grupos de trabalho para aperfeiçoar o processo legislativo, sendo temporários, à exceção do Grupo de Trabalho de Consolidação das Leis, que está previsto no Regimento Interno da Casa.
O regimento interno dispõe sobre a criação de grupos de trabalho para a consolidação de leis (art. 212), mas não regulamenta a composição e o funcionamento de GTs temáticos.
A ausência de regras não impõe o dever de realização de audiências públicas e outras formas de participação social, bem como, é desnecessária a observância da matriz da representação partidária proporcional, uma vez que seus membros são de livre nomeação pelo presidente da Câmara.
Além disso, não há obrigatoriedade em relação ao “segundo passo” após o grupo de trabalho finalizar sua produção, de forma que a Câmara não é obrigada a dar encaminhamento ao que foi feito pelo grupo, com reais chances de arquivamento, e, a possibilidade de votação diretamente em plenário, subtraindo o rito das comissões temáticas.
No caso dos GTs listados na planilha anexada, aqueles que tiveram projetos resultantes das discussões, quase sempre, foram levados diretamente ao plenário da Câmara, para ali terem relatores designados dentre os membros das comissões temáticas competentes, mas, sem tramitar regimentalmente naqueles colegiados, nem mesmo na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
De outra parte, na 57ª Legislatura, após uma longínqua tramitação do Projeto de Lei n. 2.630/2020, o presidente da Câmara dos Deputados criou o GT de Regulamentação da Redes Sociais, em substituição ao conhecido como PL das Fake News, para debater a regulação das redes sociais, sob o argumento que o projeto não estava maduro, apesar do reconhecimento, em debates acadêmicos, sobre a possibilidade de sua apreciação, após longo diálogo que culminou com um consenso possível. Neste caso, como amplamente noticiado, o GT foi encerrado sem sua instalação, configurando-se a utilização do procedimento como forma de esvaziamento da votação da proposta legislativa.
Mas, diversamente, no atual cenário de crise da democracia liberal, com fortalecimento do Parlamento e perda de poder político do Executivo, é possível extrair-se casos em que, para o governo foi importante a adoção deste método de tramitação de proposição legislativa, como o grupo de trabalho do sistema tributário e da regulamentação da reforma tributária.
Conclusão
O Legislativo, em democracias modernas, são o principal agente de policymaking, devendo para isso, representar diversidade; ter poder de deliberação; possuir expertise, obter informações e possuir mecanismos de fiscalização, controle e limitação (checks) sobre o Executivo.
Na democracia deliberativa só podemos ter uma policy que beneficie todos e seja apreciada em votos abertos, com transparência e mecanismos consorciativos para incluir as minorias e protegê-las das supermaiorias.
Vemos, nos últimos anos, um aumento importante na instalação dos GTs para análise de projetos na Câmara dos Deputados, com uma efetiva burla na instalação de comissões especiais e na participação das comissões temáticas permanentes, estando desvinculados de regras e mobilizados livremente pelo presidente do parlamento.
Assim, há forte conexão entre o fenômeno e o prejuízo à qualidade deliberativa do processo legislativo, ao risco de posições arbitrárias para a manutenção das prerrogativas dos parlamentares e da democracia, em detrimento da proporcionalidade da representação partidária, além da diminuição da importância das comissões temáticas, que atendem às demandas parlamentares por especialização na execução e fiscalização da política pública e proporcionam ganho informacional ao plenário e ao Executivo.
Além disso, a utilização dos GTs tende a fragilizar os partidos políticos, que, no Brasil, são fracos na arena eleitoral e fortes na arena parlamentar (Pereira e Mueller, 2003), com centralização decisória e alteração nas regras do jogo legislativo, na representação democrática e na governabilidade.
Por fim, deduz-se que o modelo impõe dificuldades governativas ao Presidencialismo de Coalizão, vigente desde a Nova República, no qual o Presidente é obrigado a constituir apoio no Congresso para aprovar seus projetos, impor agenda e implementar políticas públicas, em flagrante papel desagregador, com reavaliação do poder dos líderes partidários e do diálogo com forma de deliberação.
Referências Bibliográficas
ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 5-38, 1988. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1XiEKeTbGvSZ0OmtuPb0QvtvqWXGzH_j/edit
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. (Capítulo 9) (versão em inglês: Balancing, constitutional review, and representation. International Journal of Constitutional Law, v. 3, i. 4, 2005, p. 572-58).
BRASIL. Câmara dos Deputados. Pesquisa no Sítio eletrônico. Disponível em: Grupos de Trabalho da Câmara dos Deputados - Portal da Câmara dos Deputados. Acesso em 25 a 27/2/2025.
____________Câmara dos Deputados. Pesquisa no Sítio eletrônico. Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescad/1989/resolucaodacamaradosdeputados-17-21-setembro-1989-320110-norma-pl.html.
FIGUEIREDO, Argelina Cheibub; LIMONGI, Fernando; Modelos de legislativo: o legislativo brasileiro em perspectiva comparada. Plenarium, Brasília, v.1, n.1, p. 41-56, nov. 2004
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem (tradução Renato Aguiar), 1ª ed., Rio de Janeiro: Zahar., 2018.
MELO, Marcus André e PEREIRA, Carlos. Por que a democracia brasileira não morreu? São Paulo (SP): Companhia das Letras. 2024.
MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: porque nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
NASCIMENTO, Roberta Simões. O argumento da intenção do legislador: Anotações teóricas sobre uso e significado. RIL Brasília a. 58 n. 232, 2021, p. 167-193.
________________ Quando calar é melhor do que falar. Treze táticas parlamentares para aprovação das leis. Revista Boniuris, v. 33, n. 3, 2021.
_________________ Teoria da legislação e argumentação legislativa: a contribuição de Manuel Atienza. Teoria Jurídica Contemporânea, v. 3, n. 2, 2018, pp. 157-198.
NOBRE, Marcos. Limites da democracia: de junho de 2013 ao governo Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2022.
NUNES, Felipe e TRAUMANN, Thomas. Biografia do abismo: Como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil. São Paulo (SP): HarperCollins. 2023
PEREIRA, Carlos; MUELLER, Bernardo. Partidos Fracos na Arena Eleitoral e Partidos Fortes na Arena Legislativa: a Conexão Eleitoral no Brasil. DADOS Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 46, n. 4, 2003, pp. 735-771.
PREZEWORSKI, Adam. Crises da Democracia. Rio de Janeiro (RJ): Zahar. 2020.
[1] José Agostinho M. Galvão de Barros Filho é mestrando em Direito, Regulação e Políticas Públicas na Universidade de Brasília
Discussão