Cídjan Santarém Brito*

Nos tempos atuais, existe uma política de encarceramento em massa de mulheres no Brasil. Essa política está relacionada aos aspectos étnico-raciais, tendo em vista a existência de um racismo estrutural que permeia as instituições sociais, sendo que nas instituições penitenciárias de mulheres esse racismo estrutural se torna patente, na medida em que a maioria da população carcerária do sexo feminino é composta por negras.

A origem da política de encarceramento em massa de mulheres no Brasil


Os primeiros encarceramentos de mulheres no Brasil se deram no período colonial quando as mulheres criminosas, prostitutas e escravas, eram presas juntamente com os homens criminosos sem qualquer separação de celas gerando, com isso, abusos sexuais por parte dos presos e dos guardas que eram homens. Era patente a relação étnico-racial das condutas criminalizadas e dos estereótipos étnicos-raciais das criminosas no período colonial, tendo em vista que as mulheres negras compunham o grupo das prostitutas e das escravas. Nessas prisões e casas de correção, as mulheres eram obrigadas a se prostituir para conseguir mantimentos, roupas e artigos de necessidade básica, pois o Estado não fornecia qualquer suprimento básico (ANGOTTI, 2018, p.17).


Os primeiros relatórios sobre a população carcerária no Brasil se deram no ano de 1924, quando o penitenciarista (estudioso sobre penitenciárias) José Grabriel de Lemos Britto, percorreu o Brasil analisando o sistema penitenciário. A população carcerária feminina era pouco citada nos relatórios devido ao pequeno número de mulheres encarceradas, visto que essa população carcerária era composta, em sua plenitude, por mulheres pobres e negras. O relatório de José Gabriel apontava que na cadeia de Fortaleza existiam 101 detentos homens e 05 mulheres, na Paraíba havia 173 detentos homens e 02 mulheres, sendo a mesma proporção em outros estados. A única casa de detenção que possuía separação entre Homens e mulheres era a da capital do Brasil, à época, o Rio de Janeiro, na casa do Patronato das Presas (ANGOTTI, 2018, p.18).


A política criminal aplicada às mulheres negras e pobres, e que causava seu encarceramento, tipificava condutas específicas como prática de ferimento, homicídio, infanticídio, roubo e uso de tóxicos, sendo presas mulheres até mesmo por “vadiagem”. No ano de 1934, apenas 1% (um por cento) da população carcerária no Brasil era de mulheres (ANGOTTI, 2018, p 19).


O marco inicial dos presídios femininos no Brasil se deu entre os anos de 1937 e 1942, porém a origem da separação das mulheres encarceradas dos homens encarcerados se deu nos estabelecimentos religiosos administrados pelas Irmãs da Congregação de Nossa Senhora, no ano de 1921, recebendo o nome de Patronato das Presas. Os primeiros presídios femininos no Brasil eram precários, degradantes e adaptados, sendo que poucos presídios foram construídos com a finalidade específica de constrição de mulheres. Em 1937 foi construído o Instituto Feminino de Readaptação Social em Porto Alegre no Rio Grande do Sul, em 1941 foi criado o Presídio das Mulheres junto ao Carandiru em São Paulo. No ano de1942 foram criados, concomitantemente, o Presídio das Mulheres de São Paulo e a Penitenciária de Mulheres de Bangu no Rio de Janeiro. Desde então, o encarceramento em massa das mulheres vem aumentando gradativamente (ANGOTII, 2018, p. 26).

A relação étnico- racial e a política de encarceramento em massa da mulher no Brasil


A antropologia criminal feminina tem suas origens século XIX. Silvio Almeida (ALMEIDA, 2013) cita o apoio das escolas clássicas da criminologia, principalmente a escola italiana na figura do cientista Cesare Lombroso, entre algumas categorias de análise, quando se criou o estereótipo étnico-racial da criminosa, com base nos mesmos estudos criminológicos que estereotipou o criminoso negro. O pensamento filosófico dos iluministas também contribuiu para a estereotipização do sexo feminino negro. Hegel, citado por Silvio Almeida (ALMEIDA, 2013) afirmava que os negros tinham uma tendência à lascívia, violência e ao baixo conhecimento intelectual.


Utilizando-se a conceituação das interseccionalidades das categorias (negro, classe econômica, social), observa-se que apesar de estar sendo analisada a categoria etnia, ela está envolvida em outras categorias que estruturam a sociedade como, por exemplo, classe econômica e social (PISCITELLI, 2008). Neste sentido, Silvio de Almeida contribui com a análise da questão carcerária ao vislumbrar a sociedade racialmente estruturada. Com base na concepção do racismo estrutural, Silvio Almeida (ALMEIDA, 2013) afirma que o racismo está impregnado nas entranhas da sociedade proporcionando desigualdades sociais e prejuízos étnico-raciais à população negra, principalmente à mulher negra. O racismo estrutural provoca, mesmo que não intencionalmente ou deliberadamente, uma segregação étnico-racial pelas instituições e por parte de pessoas, individualmente. Por meio do racismo institucional, as mulheres negras são prejudicadas nas relações de emprego, mesmo comprovando capacidade e aptidão para o serviço. A professora Prando (PRANDO, 2016) cita estudo informal de Carvalho (2006) que afirma a existência de confinamento racial na docência acadêmica brasileira e que apenas 1% desses docentes são negros, podendo-se inferir que o confinamento de gênero, relativo às mulheres negras, está implícito nesse estudo (PRANDO, 2016). Às mulheres restam apenas as opções de serviços considerados braçais como o de empregada doméstica, diarista, babá e mesmo a prostituição. O racismo institucional também submete as mulheres negras à violência obstétrica em hospitais públicos, tendo em vista que alguns profissionais da saúde às submetem a maior tempo de sofrimento e menor quantidade de anestesia (ALMEIDA, 2013).


O racismo estrutural também é observado na política criminal na medida em que são criminalizadas condutas das mulheres negras, além de ações das autoridades jurídicas, que podem interpretar, com base na Lei de Drogas, por exemplo, a conduta do porte de droga por uma mulher branca como o crime de “uso de drogas”, enquanto que o porte de drogas por uma mulher negra pode ser interpretado como o crime de “tráfico de drogas”, aumentando o encarceramento em massa de mulheres negras no Brasil (JUSTIFICANDO, 2019). Ainda com relação à estratificação da sociedade, percebe-se que o homem branco está no topo, a mulher branca vem em seguida, o homem negro vem logo abaixo da mulher branca e a mulher negra está em último lugar nessa classificação (FERNANDES, 2007). Essa estratificação social é perceptível até mesmo no tráfico de drogas, pois a mulher negra se encontra na última posição do tráfico, assumindo tarefas de execução (denominadas “mulas”), enquanto que as grandes posições de gerência se encontram nas mãos do homem. Atualmente algumas mulheres estão assumindo posições intermediárias de gerência no tráfico, mas continuam em posições subalternas, porém são sentenciadas às mesmas penas que os homens (JACINTO, 2011, p. 38).


A violência doméstica e o feminicídio são fatores que causam direta e indiretamente o aumento do cometimento de crimes pelas mulheres e o consequente aumento da população carcerária de mulheres no Brasil. Percebe-se que a maioria dos homicídios cometidos por mulheres está relacionada à autodefesa contra seus agressores que insistem em violentar e cometer feminicídio contra a mulher (CARNEIRO, 2009). Estas mulheres acabam sendo presas por ausência de uma defesa capacitada, pública ou privada, que argumente a existência de excludentes de ilicitude, como a legítima defesa, ou a excludente de culpabilidade com base no argumento da inexigibilidade de conduta adversa, tendo em vista o sofrimento diário a que esta mulher está submetida. Silvio Almeida (ALMEIDA, 2013) cita Luiz Gama como um dos poucos advogados que defendia os negros no final do século XIX. Na maioria das vezes, estas mulheres estão desamparadas judicialmente, sendo expostas ao arbítrio do Estado. É possível relacionar, em uma concepção étnico-racial, a violência doméstica e o feminicídio e o encarceramento feminino em massa, tendo em vista que a maioria esmagadora das vítimas de violência doméstica e de feminicídio é composta por mulheres negras pobres (MAPA DA VIOLÊNCIA).

A dignidade da pessoa humana e o tratamento dado às mulheres encarceradas no Brasil


Em sua pesquisa sobre a cor das pessoas encarceradas no Brasil, Cardoso e Monteiro (MONTEIRO e CARDOSO, 2013) demonstram que existe um confinamento étnico-racial na população carcerária no Brasil, 60% são negros enquanto 37% são brancos. Esses indicadores de vulnerabilidade analisada comparativamente entre a população evidenciam a diferença marcante entre os negros e os brancos no Brasil, sendo que esse confinamento racial se mostra mais marcante na população carcerária das mulheres.


A ONU criou um Tratado Internacional para proteção da massa carcerária de mulheres presas e o Brasil é signatário desse tratado denominado Regras de Bangkok. André Ramos (RAMOS, 2017) afirma que a grande maioria da massa carcerária composta por mulheres não oferece risco à sociedade e que o encarceramento não se mostra eficiente para a reinserção social. Existem no Brasil graves violações ao princípio da dignidade da pessoa humana previstos na Constituição da República de 88. O direito ao devido processo legal é violado. As regras de Bangkok preveem assistência judiciária, da família e até mesmo a suspensão da medida encarceradora com base melhor interesse da criança em caso de presidiárias com filhos menores de 12 ou 06 anos, conforme o caso. Preveem o suprimento de itens de higiene íntimos gratuitos e disponibilidade de água (RAMOS, 2017, p.240).

Medidas extintoras do encarceramento em massa das mulheres no Brasil


Na Inglaterra, nos anos de 1930, houve uma queda no número das mulheres presas, e o fechamento em massa desses estabelecimentos prisionais (ANGOTTI, 2018, p. 23).


Para se extirpar o encarceramento em massa das mulheres no Brasil são necessárias medidas afirmativas focando a intersecsionalidade (gênero, classe econômica e social) para mulheres negras como as cotas raciais e de gênero, mudança na política de criminalização das condutas das mulheres negras e fortalecimentos das instituições de amparo à mulher, com liberação de maior quantidade orçamentaria para esta pasta.

Referências


ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

ANGOTTI, Bruna. Entre as leis da Ciência, do Estado e de Deus. O surgimento dos presídios femininos no Brasil. Editorial Humanitas. 2018.

CARNEIRO, Ludmila Gaudad Sardinha. A tragédia de Maria: o assassinato enquanto experiência constitutiva. SCIELO. 2009.

FERNANDES, Florestan. O Negro no mundo dos brancos. Editora Global. 2007.

JACINTO, Gabriela. Mulheres presas por tráfico de drogas e a ética do Cuidado. Revistas Sociais Humanas. Universidade Federal de Santa Maria. 2011.

JUSTIFICANDO. Disponível em http://www.justificando.com/2018/12/05/como-a-justica-de-sao-paulo-sentenciou-negros-e-brancos-por-trafico, acesso em 18/08/2019.

MAPA DA VIOLÊNCIA. disponível em https://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2015_mulheres.php, acesso em 18/08/2019.

MONTEIRO, Felipe Mattos. CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional brasileiro e o perfil da população. Depen. 2013.

PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura. Unicamp. 2008.

PRANDO, Camila Cardoso de Mello. Criminologia Crítica e estudos críticos sobre branquidade: uma análise do III Encontro Brasileiro de Criminologia. 2016. (Apresentação de Trabalho/Seminário).

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. Saraiva Jur. 4º ed. 2017.